quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Núbia cristã - O Evangelho pelos caminhos do Nilo

O eunuco de Candace, rainha de Meroé, indica-nos o caminho: desde os primeiros testemunhos de fé no reino dos faraós, chegamos às vicissitudes históricas de um cristianismo nascente e «abençoado» pelo imperador e que se reforça aliando-se aos árabes.

No ano 36 da nossa era – apenas cinco anos após o Pentecostes –, o cristianismo já havia penetrado no coração da África, na pessoa do eunuco de Candace, rainha de Meroé (Sudão). A notícia que lemos no Actos dos Apóstolos (8.26-39) é muito sóbria, mas apresenta elementos que nos permitem reconstruir com razoabilidade o cenário histórico da conversão do primeiro negro ao cristianismo.
Etiópia – palavra grega que significa «rosto negro» – era o nome que, genericamente, se dava a toda a África a sul do Egipto. Candace era o título da rainha de Meroé. No século VIII antes de Cristo, surgira, ao longo do rio Nilo a sul do Egipto – portanto na África negra – um império cujos imperadores, entre 750 e 650, ocuparam o trono dos faraós. Empurrados ou retirando-se para o Egipto, transferiram a sua capital de Napata – na grande enseada do Nilo – para 250 quilómetros mais a sul, onde surgiu a cidade que os historiadores gregos chamaram Meroé. Daí, os reis de Meroé dominaram, servindo-se de um sistema feudal, quase todo o território do actual Sudão, passando por períodos alternados de expansão e de recessão.
A rainha de Meroé tinha um ministro – eunuco, conforme o uso da época – que superintendia os seus tesouros (em especial o ouro que se extraía nas montanhas do deserto oriental) e, por conta disso, fazia viagens ao Egipto, onde fazia negócio com os numerosos comerciantes hebreus aí estabelecidos. Por eles, conheceu a religião monoteísta e a ela aderiu, de tal forma que foi a Jerusalém adorar o Deus de Israel. Como em todos os locais de peregrinação, também em Jerusalém havia bancas de venda de livros, onde o eunuco comprou um rolo de papiro ou pergaminho com os 66 capítulos de Isaías, em língua grega.
No regresso, o ministro negro pôs-se a ler em voz alta; o diácono Filipe, ao escutá-lo, ficou maravilhado e perguntou-lhe: «Compreendes, verdadeiramente, o que estás a ler?» Ao ouvir uma resposta negativa, Filipe ofereceu-se para o ajudar e explicou-lhe que o profeta falava de Jesus de Nazaré... A narração dos Actos termina com o eunuco a receber o baptismo. Teria o ministro sido o evangelizador do seu povo? As lendas assim o pretendem – todas elas fantásticas e credíveis – escritas nos séculos seguintes; mas a história não é da mesma opinião. Se no reino de Meroé tivesse havido uma igreja, os escritores cristãos do Egipto deixar-nos-iam algum relato disso. Pelo contrário, no século V, a Núbia ainda era toda pagã.

Missão de Justiniano

É João, bispo de Éfeso mas funcionário na corte do imperador Justiniano I (527-565), em Constantinopla, quem nos conta, na sua História Eclesiástica, como foi evangelizada a Núbia «partindo do nada». Depois de ter reunido sob o seu ceptro o Império do Ocidente e o do Oriente, Justiniano procurava estabelecer alianças com os reis de além-fronteiras, para proteger os seus confins das incursões dos bárbaros. A sul do Egipto havia três reinos no vale do Nilo, conhecidos pelo nome de Nobadia, com a capital em Pachoras (hoje Faras), Makoria, com a capital em Dôngola, na grande enseada do Nilo, e Alodia, com a capital em Soba, na confluência do Nilo Azul com o Nilo Branco.
O imperador resolveu enviar ao rei de Nobadia uma missão para pregar o Evangelho, segundo a sua fé católica. Sua mulher, Teodora, egípcia e fanática monofisita (em linguagem moderna, copta-ortodoxa), contornou o marido, a fim de aumentar o prestígio do patriarca monofisita Teodósio, perseguido, devido à sua fé, pelo próprio imperador e exilado em Constantinopla. Enviou, então, secretamente, o padre Juliano – seu compatriota – com ordem para as autoridades imperiais do Alto Egipto de o encaminharem para a Núbia antes dos mensageiros do imperador. Em Pachoras, depois de ter apresentado ao rei cartas e dons da imperatriz, Juliano consegue atraí-lo, com todo o seu reino, para a sua causa, e põe-no de sobreaviso contra a pregação dos enviados do imperador. Estes, logo que chegaram, verificaram que o rei já havia abraçado a fé de Teodósio.
As escavações da missão arqueológica polaca em Dôngola – em curso há 30 anos – levam-nos a crer, com indícios cada vez mais evidentes, que os mensageiros de Justiniano, fracassada a missão em Nobadia, prosseguiram para Dôngola, onde realizaram os seus objectivos. O reino de Makoria teria recebido, portanto, a fé católica por volta do ano 550.
Depois de dois anos de permanência em Pachoras (543-545), Juliano regressou a Constantinopla, após ter confiado os neófitos ao seu colega de pregação, o bispo Teodoro de Filé – ilhéu da primeira catarata – e continuou, de quando em quando, a enviar alguns padres, a fim de eles visitarem os fiéis. Em 566, o patriarca Teodósio, no leito de morte, lembra-se dos cristãos de Nobadia e consagra para eles o bispo Longino. O imperador Justino I – católico mais fanático que o seu antecessor – mandou-o logo encarcerar. Mas Longino conseguiu, ao fim de três anos, evadir-se, fugindo para a Núbia, onde fundou estavelmente a Igreja (569-575). Em seguida, participou, em Alexandria, no sínodo para a eleição do novo patriarca, mas só conseguiu regressar a Pachoras em 580, devido a problemas de intrigas. Por fim, o rei de Alodia, que talvez fosse parente do de Nobadia, pediu-lhe para lhe enviar Longino, a fim de evangelizar o seu reino. Assim, entre 543 e 580, todo o vale do Nilo, entre a primeira catarata e a confluência do Nilo Azul-Nilo Branco, se tornou, pelo menos oficialmente, cristão.

Os archeiros núbios

Em 640, um exército árabe, comandado por Amru Ibn al-As, toma Alexandria, a capital egípcia. Diz-se que o patriarca copto Benjamim, em nome dos seus fiéis, abençoou a chegada dos árabes «libertadores» dos opressores bizantinos.
Num ano, os árabes chegaram a Assuão, na fronteira da Núbia. Depois de um período de incursões recíprocas, Amru enviou, em 641, uma grande expedição militar de conquista. Mas a operação não se ficou por um mero passeio, porque os archeiros núbios acertavam em cheio nos invasores. Depois de mais uma tentativa falhada, Saad Ibn Abi Sahr, que sucedera a Amru em 646, assinou, junto às muralhas da capital, Dôngola, um pacto (baqt) com o rei.
A Núbia e os árabes empenharam-se, desta forma, a respeitar as fronteiras e estabeleceram trocas comerciais oficiais: todos os anos, 360 escravos saudáveis teriam de ser enviados para o Egipto, em troca de tecidos, cereais e outras mercadorias. O baqt, embora com algumas violações, permaneceu em vigor até 1270. O envio anual de escravos não suscitava qualquer escândalo na Núbia, porque o rei era tradicionalmente dono de tudo – homens e terras – e os escravos eram, na maioria, despojos de guerra conquistados às tribos vizinhas. Mas mesmo quando era um súbdito a tornar-se escravo, ele aceitava o facto e beijava a terra gritando: «Viva o rei!»
Não obstante o baqt, os núbios e os árabes continuavam em guerra. Mas uma consequência irrefutável do pacto – no campo sociocultural-religioso – foi que a Igreja na Núbia não só sobreviveu como se consolidou. Um documento do ano 710 fala de quatro sedes episcopais na Baixa Núbia (contígua ao Egipto) dependentes do patriarca copto de Alexandria. Mas conhecem-se outras sedes episcopais na Alta Núbia, entre as quais, muito provavelmente, havia algumas dirigidas por bispos católicos. Obviamente que o povo nada percebia das querelas dogmáticas entre coptos (monofisitas) e católicos (duofisitas). Na Núbia ainda se encontram restos de mosteiros masculinos, mas de mosteiros femininos nem sombra.
O cristianismo difundiu-se, de certo modo, pelo estreito vale do Nilo, também nos desertos a oriente e a ocidente do rio.

Fonte: Revista Além-Mar

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